quinta-feira, 15 de abril de 2010

Certa hora, sem exatidão.

Dispenso sempre a relutância, não que eu seja fraca, impaciência é meu forte. Mas de todas as expectativas, nenhuma me prendeu mais do que o seu contrário me infiltrando. Por mais que sempre enojei a vontade excessiva e a ansiosidade, desta vez me algemei. Foi naquela noite comum, aparentemente, que comecei a olhar para dentro, buscando a exaltação que nunca tive, atentando-me a todos os detalhes, eu queria saber, entender, justificar até certo ponto, o motivo de toda a inversão. Eu caminhei, sem rumo, ora lento, ora lépido, olhei para todos os prédios vazios que me cercavam, senti o vento banhando-me secamente. Quando me sentei no degrau daquela irregular escadaria o melhor que pude fazer foi assistir a entonação desafinada, no mais grave e alto tom, balançar-me dos pés à cabeça. Meus pensamentos mantinham-me absorta e desligada do mundo, a hora passava extremamente rápida e pingo a pingo, como um conta-gotas desenfreado, a ignóbil vida que até então levava, desfazia-se pelas pontas dos meus dedos gélidos. Eu tentei entender o abalo, justifiquei-o de todas as maneiras possíveis, mas nada foi plausível. Sentia-me mergulhada em um mar vazio, onde os peixes sorriam diabolicamente e cercavam-me a fim de me devorar, eu olhava assustada e debatia-me tentando nadar quilômetros, fugir de tudo e isolar-me em qualquer ilha, mas não havia água, nem terra, nem ar, havia somente dentes afiados prontos para devorar-me. Era o troco por minha fome excessiva, por tentar mudar o “concreto” o “certo”. Certa hora, sem exatidão, olhei um homem parado à minha frente, olhando-me profundamente e sorrindo, diabolicamente, mostrando aquela arcada falha, foi como ver a mim mesmo. Levantei-me e busquei um equilíbrio que não vinha, minhas pernas bambas não sustentavam meu peso. Como um objeto sem vida, despenquei em sua direção, com as mãos estendidas, ele me segurou sem esforço, seu toque era indizível, tão áspero a ponto de arranhar-me, mas tão leve quanto a mais pura seda. Eu tentei abraçá-lo, não lembro o motivo, mas meus braços o transpassavam, era como agarrar uma nuvem, seu corpo parecia feito de um gás qualquer, que ao inalar eu sentia uma falta de ar brusca, era como se meus órgãos parassem de funcionar. No mais alto desespero tentei agarra-lo, não me interessava o sentido daquele ato, eu queria desesperadamente uma prova sólida da sua presença, meus braços fracos buscaram o toque que não veio. Exacerbada eu fechei os olhos, deixei-me solta, sem nenhum ponto de equilíbrio, e então flutuei sentado naquela irregular calçada, duvidei da existência de tudo, nem mesmo eu, a única prova verdadeira de vida, existia concretamente naquele momento. Flutuando eu sobrevoei a cidade, olhando tudo como Deus, fazendo com os homens aquilo que tem por hábito fazer, quando se está acima deles, desejando os homens que caminhavam pelas ruas, queria-os mortos, adoraria devorar suas carnes frias sem sangue. O vôo era suave, eu sorria felicitada, satisfeita e louca, poderia chover dejetos, excrementos e todo tipo de podridão existente, eu era inatingível, um ponto inexistente e invisível, uma ave solitária que buscava seu entendimento e sua existência em um mundo de objetos inanimados. Decidi-me por voltar ao solo, pousar em cima dos restos, da carniça ainda em decomposição, e meio aos urubus que regurgitavam carne podre. Em terra, olhei para os lados, era observada e observadora, como rodeada de espelhos, os reflexos transpassavam-me, rebatiam no espelho de ar, e cortavam-me como uma lamina afiada, eu perdia membros, sonhos, cabelos, dentes, pulmões e forças. Agora era eu o alvo, a desapontada, o cerne da contradição, pronto para ser devorada, sem saber como fugir, tentando, relutando, fazendo tudo ao oposto do que sempre fiz. Maldição, eu era tão sólida, tão decidida, mas naquele momento não passava de uma boneca marionete, controlada e manipulada. Foi exatamente no momento mais desesperador, em que não havia forças, muito menos voz para gritar por ajuda, que o urubu mais podre atacou-me, devorou meus olhos com facilidade, agora eu era um cego no mundo dos assassinos, tudo se tornou preto, obscuro e silencioso, um vazio mórbido como nunca imaginei, o barulho ensurdecedor e silencioso do vento era cortado por bater de asas longas, cada vez mais perto. Debatia-me alucinadamente, nada acertava, era como lutar contra um monstro de vento. Eu, perdida, contrariada, fui devorada viva, sentindo cada ataque, cada carne arrancada a frio, sobrou-me somente o pensamento, imaterial e confuso. Sobrevoando aquela carnificina, voltei às ruas, ao labirinto de prédios cinza, vagando ainda sem uma conclusão, buscando algo mais sólido do que homens de vento, mais raivoso do que peixes famintos, mais podre do que aves carniceiras, mais livre do que voar sobre a cidade, eu queria outro corpo, outra embalagem, queria recomeçar, conquistar novamente, ser conquistada, dançar a música da vida outra vez. Tudo porquê o seu contrario me entorpeceu, infiltrou e corroeu minhas certezas. Vaguei como pensamento por horas até o sol aparecer grandioso e evaporar-me por completo. Seu contrário me desembruteceu, depois me reduziu ao menor grão possível, por fim me dizimou, logo eu, não passo de pequenos fragmentos dispersos no ar, espalhando-me dolorosamente por toda a cidade, envolvendo corpos sem vida que sorriem mecanicamente, um riso louco, ensurdecedor, como o meu fora em tempos de certeza e prazer, ileso à sua existência.O que sou e não sou, o que fui, e não fui, ilusionar e acreditar, eu sei que tudo tem um FIM.

2 comentários:

  1. Hmmm...
    por enquanto estou em choque, não consigo acreditar no tanto de sentimento que tem esse desabafo, lindo..... algo raro

    Foda!!!

    ResponderExcluir
  2. O FIM nada mais eh que um começo de algo desconhecido, um de vir, um espetaculo cuja as cortinas ainda não foram abertas e as luzes sequer foram acessas...
    No FIM sempre encontramos o começo do novo e vice-versa.

    Te odeio e sempre ei de te ódiar...
    Cuide-se

    ResponderExcluir

O que faz um mundo pior?